31.12.08

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Não há que desesperar do homem,
temos ainda
— arca de surpresas — os meninos,
e é proibido antecipar a sorte.

Degustam bem aventuradamente

um naco de melancia,
acomodam-se numa caixa de biscoito,

aderem ao carnaval.

Seus olhos profundos indagam:

— Que fazes por mim?

Não sabemos responder,
mas os meninos continuam,
esperança de todos os dias

e promessa de humanidade.


(Carlos Drummond de Andrade)
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30.12.08

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POEMA DA DEVASTAÇÃO
Há uma devastação
nas coisas e nos seres,
como se algum vulcão
abrisse as sobrancelhas
e ali, sobre esse chão,
pousassem as inteiras
angústias, solidões,
passados desesperos
e toda a condição
de homem sem soleira,
ventura tão curta,
punição extrema.

Há uma devastação
nas águas e nos seres;

os peixes, com seus viços,
revolvem-se no umbigo
deste vulcão
de escamas.

Há uma
devastação
nas plantas e nos seres;
o homem recurvado
com a
pálpebra nos joelhos.
As lavas soprarão,
enquanto nós vivermos.

(Carlos Nejar)

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CONTRA A ESPERANÇA
É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar, enquanto
um fio de água, um remo,
peixes existem e sobrevivem
no meio de litígios;
enquanto bater
a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.



É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro a correr
sobre o campo

e uma pequena lebre
que a noite
em vão esconde.

O universo é um telhado
com sua calha, tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.

É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.

E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.

Um balde a mais
na esperança
e sobre nós.

(Carlos Nejar)
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28.12.08


.DE QUE É QUE TEM SEDE A NOSSA ALMA?
Sempre neste mundo haverá a luta, sem decisão nem vitória, entre o que ama o que não há porque existe, e o que ama o que há porque não existe. Sempre, sempre, haverá o abismo entre o que renega o mortal porque é mortal, e o que ama o mortal porque desejaria que ele nunca morresse. Vejo-me aquele que fui na infância, naquele momento em que o meu barco dado se virou no tanque da quinta, e não há filosofias que substituam esse momento, nem razões que me expliquem porque passou. Lembro-o, e vivo; que vida melhor tens tu para me dar?

— Nenhuma, nenhuma porque também eu lembro.

Ah, lembro-me bem! Era na casa velha da quinta antiga e ao serão; depois de coserem e fazerem meia, o chá vinha, e as torradas, e o sono bom que eu haveria de dormir. Dá-me isto outra vez, tal qual era, com o relógio a tictacar ao fundo e guarda para ti os Deuses todos. Que me é um Olimpo que me não sabe às torradas do passado? Que tenho eu com deuses que não têm o meu relógio antigo?

Talvez tudo seja símbolo e sombra, mas não gosto de símbolos e não gosto de sombras. Restitui-me o passado e guarda a verdade. Dá-me outra vez a infância e leva Deus contigo.

— Os teus símbolos! Se eu chorar na noite, como uma criança com medo, nenhum dos teus símbolos me vem afagar no ombro e embalar por ali até que eu durma. Se eu me perder na estrada, tu não tens Virgem Maria melhor que me venha buscar pela mão. Tenho frio das tuas transcendências. Quero um lar no Além. Julgas que alguém tem sede na alma de metafísicas ou de mistérios ou de altas verdades?

— De que é que se tem sede nessa alma?

— De qualquer coisa como tudo que foi a nossa infância. Dos brinquedos mortos, das tias velhas idas. Essas coisas é que são a realidade, embora morressem. Que tem o Inefável comigo?

— Uma coisa... Tiveste algumas tias velhas, e alguma quinta antiga e algum chá e algum relógio?

— Não tive. Gostaria de ter tido. E tu viveste à beira-mar?

— Nunca. Não o sabias?

— Sabia, mas acreditava. Para que descrer do que só se supõe?
Não sabes que este é um diálogo no jardim do Palácio, um interlúdio lunar, uma função em que nos entretemos enquanto as horas passam para os outros?

— Pois sim, mas eu estou a raciocinar...

— Está bem: eu não estou. O raciocínio é a pior espécie de sonho, porque é aquele que nos transporta para o sonho a regularidade da vida que não há, isto é, é duplamente nada.

— Mas o que quer isso dizer?

(Pondo-lhe a mão no outro ombro, e envolvendo-o num abraço.)
— Ó filho, o que quer qualquer coisa dizer?


(Fernando Pessoa, Livro do Desassossego por Bernardo Soares , v. II, s.d. )
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26.12.08

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JE CROIS ENTENDRE ENCORE

Je crois entendre encore
Caché sous les palmiers
Sa voix tendre et sonore
Comme un chant de ramiers

Oh nuit enchanteresse
Divin ravissement
Oh souvenir charmant,
Folle ivresse, doux rêve!

Aux clartés des étoiles
Je crois encore la voir
Entr'ouvrir ses longs voiles
Aux vents tièdes du soir.

Oh nuit enchanteresse
Divin ravissement
Oh souvenir charmant
Folle ivresse, doux rêve!

Charmant souvenir!
Charmant souvenir!


Je crois entendre encore: a belíssima ária de Bizet, um dos pontos
altos da ópera O Pescador de Pérolas, na também belíssima
interpretação não
lírica de Alison Moyet.

Para ouvi-la, clique aqui: Je crois entendre encore.


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É possível fazer o download do CD clicando aqui: Voice, Alison Moyet.

22.12.08

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O BRINQUEDO DO POBRE
Quero dar a idéia de uma distração inocente. Há poucas diversões que o sejam!
Quando sair de manhã com a intenção de vagar pelas estradas, enche o bolso de pequeninas invenções baratas ­­­­— como o polichinelo simples de uma corda só, os ferreiros que malham a bigorna, o cavaleiro e o cavalo de cauda em forma de apito — e pelos cabarés embaixo das árvores presta com elas homenagem às crianças pobres e desconhecidas que encontrar. Verás aumentarem desmesuradamente os seus olhos. Primeiro, elas não ousarão tocar em nada, não acreditarão na sua felicidade. Depois, suas mãos agarrarão com vivacidade o presente e elas fugirão como os gatos que, tendo aprendido a desconfiar do homem, vão comer longe o bocado que ganharam.
Numa estrada, por trás das grades de um enorme jardim, no fundo do qual aparecia a brancura de um lindo castelo batido pelo sol, havia uma criança terna e bela, vestida com essas roupas do campo tão cheias de coqueteria.
O luxo, a indolência e o espetáculo habitual da riqueza tornam essas crianças tão bonitas que parecem feitas de outra massa que não a dos filhos da mediocridade ou da pobreza.
Ao lado dela, sobre a grama, um brinquedo esplêndido, tão viçoso quanto o dono, envernizado, dourado, vestido de púrpura, recoberto de plumas e vidrinhos. Mas a criança não ligava para seu brinquedo predileto, antes olhava isto:
Do outro lado da grade, na estrada, entre os cardos e urtigas, estava uma outra criança, suja, mirrada, fuliginosa, um desses párias de fedelhos em que o olho imparcial, se o desbastasse da repugnante pátina da miséria, como o olho do conhecedor adivinha uma pintura ideal por debaixo do verniz de sejeiro, descobriria a beleza.
Através dessas grades simbólicas entre dois mundos, a estrada e o castelo, a criança pobre mostrava à rica o seu brinquedo, que a segundo examinava avidamente, como um objeto raro e desconhecido. Ora, esse brinquedo agastado pelo sujinho, que o sacudia e balançava numa caixa gradeada era um rato vivo! Os pais, certamente por economia, haviam extraído o brinquedo da própria vida.
E as duas crianças riam fraternalmente uma para a outra, com dentes de brancura igual.

(Charles Baudelaire)

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21.12.08

São muitas, seguramente, as coisas
que ainda querem ser cantadas por mim:
tudo o que mudo ressoa,
o que no escuro subterrâneo afia a pedra,
o que irrompe através da fumaça.
Ainda não ajustei contas com a chama,
nem com o vento e nem com a água...
É por isso que a minha sonolência
abre-me, de par em par, os portões
que levam à estrela da manhã.


(Anna Akhmátova, in: Os Mistérios do Ofício)
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DIDO'S LAMENT:
WHEN I AM LAID IN EARTH

When I am laid, am laid in earth,
may my wrongs create.
No trouble, no trouble in thy breast.
Remember me, remember me,
but ah! forget my fate.
Remember me,
but ah! forget my fate.
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(Ária da ópera Dido and Aeneas, ato III, de Henry Purcell)

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Dido, princesa de Tiro (Fenícia), fugindo da tirania de seu
país emigrou para a Líbia, onde fundou a cidade de Cartago.
No papel de rainha, acolheu como refugiados Eneas e seus
companheiros, sete anos depois de terminada a Guerra de
Tróia. Dido se apaixona por Eneas, mas se mostra relutante
em declarar o seu amor. Sua irmã Belinda e sua corte
a incentivam a se declarar. Quando Eneas a pede em
casamento, Dido aceita, para alegria de todos.
No entanto, bruxas más, planejando a desordem, levantam
uma tempestade e enviam um duende disfarçado de
Mercúrio até Eneas, para relembrá-lo de que deve seguir
seu caminho até a Itália. Para grande satisfação das bruxas,
ele segue o conselho e deixa Cartago. Desolada ela traição
de Eneas ao amor que lhe dedicou, Dido se despede da vida.

Ouça a maravilhosa interpretação não lírica do
Lamento de Dido na voz de Alison Moyet.
Clique no link abaixo ou na barra de vídeo à direita.
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TECENDO A MANHÃ


1
Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

2
E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.



(João Cabral de Melo Neto)

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Dentro de mim estão presos e atados ao chão
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa dos átomos,
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,
E a chuva como pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!

(Álvaro de Campos)

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O QUE TEMOS FEITO DE NÓS
Mas olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia. Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos nenhuma alegria que já não tenha sido catalogada. Temos construído catedrais, e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gafe. Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer "pelo menos não fui tolo" e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.

(Clarice Lispector, in: Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres)

Ouça o texto interpretado por David Duarte.
Clique na barra de vídeo à direita.
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20.12.08

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CAÇADOR DE RAÍZES
Eu pertenço à fecundidade

e crescerei enquanto crescem as vidas:
sou jovem com a juventude da água,
sou lento com a lentidão do tempo,
sou puro com a pureza do ar,
escuro com o vinho da noite
e só estarei imóvel quando seja
tão mineral que não veja nem escute,
nem participe do que nasce e cresce.

Quando escolhi a selva
para aprender a ser,
folha por folha,
estendi as minhas lições
e aprendi a ser raiz, barro profundo,
terra calada, noite cristalina,
e pouco a pouco mais, toda a selva.

(Pablo Neruda)

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CORSÁRIO

Meu coração tropical está coberto de neve,
mas ferve em seu cofre gelado,
a voz vibra e a mão escreve "mar".
Bendita lâmina grave que fere a parede
e traz as febres loucas e breves
que mancham o silêncio e o cais.

Roseirais, nova Granada de Espanha,
por você, eu, teu corsário preso,
vou partir a geleira azul da solidão
e buscar a mão do mar,
me arrastar até o mar,
procurar o mar.

Mesmo que eu mande em garrafas mensagens por todo o mar
meu coração tropical partirá esse gelo
e irá como as garrafas de náufrago e as rosas partindo o ar.
Nova Granada de Espanha e as rosas partindo o ar.

Vou partir a geleira azul da solidão
e buscar a mão do mar
me arrastar até o mar,
procurar o mar.

Mesmo que eu mande em garrafas mensagens por todo o mar
meu coração tropical partirá esse gelo
e irá como as garrafas de náufrago e as rosas partindo o ar
meu coração tropical partirá esse gelo e irá.

(João Bosco / Aldir Blanc)



Ouça Corsário, com Zizi Possi e Elis, no Youtube.
Clique na barra de vídeo à direita.
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ARTE POÉTICA
Entre sombra y espacio, entre guarniciones y doncellas,
dotado de corazón singular y sueños funestos,
precipitadamente pálido, marchito en la frente
y con luto de viudo furioso por cada día de vida,
ay, para cada agua invisible que bebo soñolientamente
y de todo sonido que acojo temblando,
tengo la misma sed ausente y la misma fiebre fría
un oído que nace, una angustia indirecta,
como si llegaran ladrones o fantasmas,
y en una cáscara de extensión fija y profunda,
como un camarero humillado, como una campana un poço ronca,
como un espejo viejo, como un olor de casa sola
en la que los huéspedes entran de noche perdidamente ebrios,
y hay un olor de ropa tirada al suelo, y una ausencia de flores
— posiblemente de otro modo aún menos melancólico —,
pero, la verdad, de pronto, el viento que azota mi pecho,
las noches de substancia infinita caídas en mi dormitorio,
el ruido de un día que arde con sacrificio
me piden lo profético que hay en mí, con melancolía
y un golpe de objetos que llaman sin ser respondidos
hay, y un movimiento sin tregua, y un nombre confuso.

(Pablo Neruda)
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QUERO ESCREVER O BORRÃO VERMELHO DE SANGUE

Quero escrever o borrão vermelho de sangue com as gotas e coágulos pingando de dentro para dentro. Quero escrever amarelo-ouro com raios de translucidez. Que não me entendam pouco-se-me-dá. Nada tenho a perder. Jogo tudo na violência que sempre me povoou, o grito áspero e agudo e prolongado, o grito que eu, por falso respeito humano, não dei. Mas aqui vai o meu berro me rasgando as profundas entranhas de onde brota o estertor ambicionado. Quero abarcar o mundo com o terremoto causado pelo grito. O clímax de minha vida será a morte. Quero escrever noções sem o uso abusivo da palavra. Só me resta ficar nua: nada tenho mais a perder. (Clarice Lispector)
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OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


(Carlos Drummond de Andrade)

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GUARDANAPOS DE PAPEL

Na minha cidade tem poetas, poetas,
que chegam sem tambores nem trombetas, trombetas,
e sempre aparecem quando menos aguardados, guardados,
guardados entre livros e sapatos, em baús empoeirados.

Saem de recônditos lugares, no ares, nos ares,
onde vivem com seus pares, seus pares, seus pares,
e convivem com fantasmas multicores, de cores, de cores
que te pintam as olheiras e te pedem que não chores.
Suas ilusões são repartidas, partidas, partidas,
entre mortos e feridas, feridas, feridas,
mas resistem com palavras confundidas, fundidas,
fundidas ao seu triste passo lento pelas ruas e avenidas.

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Não desejam glórias nem medalhas, medalhas, medalhas,
se contentam com migalhas, migalhas,
migalhas de canções e brincadeiras
com seus versos dispersos, dispersos,
obcecados pela busca de tesouros submersos.

Fazem quatrocentos mil projetos, projetos, projetos
que jamais são alcançados, cansados, cansados.
Nada disso importa enquanto eles escrevem, escrevem,
escrevem o que sabem que não sabem
e o que dizem que não devem.

Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
como se fossem cometas, cometas, cometas
num estranho céu de estrelas idiotas,
e outras e outras cujo brilho sem barulho
veste suas caldas tortas.

Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
esvaindo-se em milhares, milhares, milhares de palavras
retorcendo-se confusas, confusas, confusas,
em delgados guardanapos, feito moscas inconclusas.

Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
o que eles vêem nos vão dizendo, dizendo,
e sendo eles poetas de verdade
enquanto espiam e piram, e piram,
não se cansam de falar do que eles juram que não viram.

Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas,
como se fossem lunetas,
lunetas lunáticas lançadas ao espaço,
e o mundo inteiro, inteiro, inteiro fossem vendo
para depois voltar para o Rio de Janeiro.

(Leo Masliah­­)
(In: Milton Nascimento, Nascimento, 1997, faixa 3)
Para ouvir, clique aqui: Guardanapos de papel.


É possível copiar o CD. Clique aqui: Nascimento.
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19.12.08

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PECADO ORIGINAL

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.

O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.

Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.
Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois?

Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.

Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?

Quantos Césares fui!

Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!

(Álvaro de Campos)
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COMO ÁGUA PARA CHOCOLATE

— Como vê, todos nós temos em nosso interior os elementos necessários para produzir fósforo. E, além disso, deixe-me dizer-lhe algo que nunca confiei a ninguém. Minha avó tinha uma teoria muito interessante: dizia que ainda que nasçamos com uma caixa de fósforos em nosso interior, não podemos acendê-los sozinhos porque necessitamos, como no experimento, de oxigênio e da ajuda de uma vela. Só que nesse caso o oxigênio tem de provir, por exemplo, do alento da pessoa amada. A vela pode ser qualquer tipo de alimento, música, carícia, palavra ou som que faça disparar o detonador e assim acender um dos fósforos. Por um momento nos sentimos deslumbrados por uma intensa emoção. Se produzirá em nosso interior um agradável calor que irá desaparecendo pouco a pouco conforme passe o tempo, até que venha uma nova explosão a reavivá-lo. Cada pessoa tem de descobrir quais são seus detonadores para poder viver, pois a combustão que se produz ao acender-se um deles é o que nutre de energia a alma. Em outras palavras, esta combustão é seu alimento. Se uma pessoa não descobre a tempo quais são seus próprios detonadores, a caixa de fósforos se umedece e já não podemos acender um só fósforo. Se isso chegar a acontecer, a alma foge de nosso corpo, caminha errante pelas trevas mais profundas tentando em vão encontrar alimento por si mesma, ignorando que só o corpo que deixou inerme, cheio de frio, é o único que podia lhe dar isso. (...)

— Por isso é preciso permanecer distante de pessoas que tenham um hálito gelado. Sua presença em si poderia apagar o fogo mais intenso, com os resultados que já conhecemos. (...)

— Claro que também deve tomar muito cuidado em ir acendendo os fósforos um por um. Porque, se por uma emoção muito forte, chegam a se acender todos de uma só vez produzem um resplendor tão forte que ilumina mais além do que podemos ver normalmente, e então diante de nossos olhos aparece um túnel esplendoroso que nos mostra o caminho que esquecemos no momento de nascer e que nos chama a reecontrar nossa perdida origem divina. (...)

(Laura Esquivel, Como água para chocolate)





Veja no Youtube a cena do filme que reproduz este texto.
Clique na barra de vídeo à direita.

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APONTAMENTO
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu, um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

(Álvaro de Campos)

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MORRO DO QUE HÁ NO MUNDO

Morro do que há no mundo:
do que vi, do que ouvi.
Morro do que vivi.
Morro comigo, apenas:
com lembranças amadas,
porém desesperadas.
Morro cheia de assombro
por não sentir em mim
nem princípio nem fim.
Morro: e a circunferência
fica, em redor, fechada.
Dentro sou tudo e nada.


(Cecília Meireles)
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18.12.08

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A LUCIDEZ PERIGOSA

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum. É uma lucidez vazia, como explicar? Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou, por assim dizer, vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo, pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço. Além do que, que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.

(Clarice Lispector, in: A Descoberta do Mundo)
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TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.


Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte

(Ferreira Gullar)
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17.12.08

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ADIOS NONINO

Considerada a obra mais representativa de Astor Piazzola, foi composta em
outubro de 1959, em Nova York, poucos dias depois da morte de seu pai,
Vincente Nonino Piazzolla.
Sobre sua composição, Piazzolla teria dito, vinte anos depois: “Talvez eu
estivesse rodeado de anjos. Foi a mais bela melodia que escrevi e não sei
se alguma vez farei melhor”.



Ouça
Astor Piazzolla e seu Quinteto Tango Nuevo ativando aqui:



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NU DESCENDO A ESCADA (1-2-3), quadros cubo-futuristas de Marcel Duchamps
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........................(1911) .............................................(1912).............................................(1916)

(Acervo do Philadelphia Museum of Art)

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